segunda-feira, março 28, 2016

Europa em 60 dias - Coimbra, Portugal - Em busca das origens - Parte II


Praça 8 de Maio - Coimbra
Havia deixado Aveiro sob uma chuva fina e insistente por volta das 12 horas. Sentei-me no vagão e pus-me a ler as notas das minhas pesquisas genealógicas, a atualizar algumas informações, a rever os planos de visitas aos sítios de meus ancestrais para otimizar meus dias em Coimbra. Pelas largas janelas do trem, via os olivais e as pequenas vilas ficarem para trás. Adiante de mim, se abria uma rota nova, cortada pela estrada de ferro e pedras que formavam o caminho. Se de Ílhavo e Eixo vinha a família de meu pai, era de várias vilas no distrito de Coimbra que vinham boa parte dos meus ancestrais maternos. Pus de lado o caderno de notas, fechei os olhos, comecei a traçar o caminho do meu trisavô Domingos Dias Brandão, que há mais de cem anos deixara o lugar de Covelos, na freguesia de Foz de Arouce, Concelho da Lousã, Distrito de Coimbra, Região das Beiras, (é tão mais fácil ter "bairro, município, estado e região"!) e partira a singrar os mares por mais de vinte dias, para do outro lado do Atlântico, na Cidade da Bahia, dar origem à minha família. O que o tinha levado a isso? e aqui,
Faculdade de Direito de Coimbra
haveria ainda parentes nossos? como seria de verdade o lugar de Covelos que eu tinha "visitado" por tantas vezes pelo Google maps 3D? O comboio parou, a senhora que vinha ao meu lado, pensando que eu dormia, tocou levemente o meu braço e me disse que estávamos na estação final, eu agradeci. As pessoas começaram a levantar, as portas se abriram, uma lufada de vento frio, desautorizando o sol brilhante, esfriou o vagão.
Da porta, vi que o dia estava radiante quando desembarquei na estação de comboios Coimbra (A), que fica exatamente no centro da cidade. Apenas uma hora havia passado desde que saímos de Aveiro. Ao descer do trem, as malas ainda com salpicos da chuva que lá peguei, respirei profundamente o ar úmido e frio vindo do Rio Mondego, correndo ali ao lado. Saí da estação, tomei a esquerda, Google maps na mão, em busca da Rua Saragoça, onde me hospedaria. 
Já habituado à arquitetura portuguesa, não me detive muito observando a cidade e continuei caminhando até ficar de frente a uma ruazinha estreita de pedrinhas brancas ladeada por várias casas comerciais. Parei, olhei a indicação no maps, decidi pegar aquela rua. As malas, embora tivessem praticamente o mesmo conteúdo, estavam levemente mais pesadas, talvez devido à falta de exercício, talvez devido ao cansaço de tantos dias de viagens e emoções.
Continuei puxando minhas malas, pedindo passagem aqui e ali às pessoas que paravam a conversar tranquilas com seus conhecidos ou com os vendedores das lojas. De repente, quando me preparava a parar mais uma vez, ouvi uma voz doce, com um levíssimo sotaque, chamar meu nome. Virei para confirmar que era mesmo comigo e me deparei com a Teresa e a Francesca - as italianinhas que conheci em Aveiro. Havia dois dias, fui deixá-las na estação de comboios de Aveiro, e agora ali, sem marcar nada, nos reencontrávamos no fervilhante centro de Coimbra. Que felicidade reencontrá-las e ouvir de novo suas vozes cheias de uma cadência única, de uma música linda, quer falássemos em italiano ou em português. Elas me apresentaram ao Riccardo, conterrâneo seus que estudava na Universidade de Coimbra, e, depois de alguma conversa, voltei ao meu caminho em direção às ladeiras da cidade, às enormes ladeiras da cidade, puxando minhas malas e sentindo minhas batatas da perna arderem, meus braços doerem, meu suor escorrer rios até chegar à casa da dona Fátima, onde passaria os próximos 12 dias.
Vista do Mondego ao pôr do sol a partir da Ponte Pedro e Inês - Coimbra
Uma surpresa de aniversário
Rua Visc. da Luz - Coimbra
Cheguei no dia 27 de janeiro, dia do meu aniversário. Mas, como não sou de me ligar muito pra data, não comentei o assunto nem com minhas amigas, nem com minha anfitriã, para não deixá-las agoniadas a fazerem regalos ou me pagarem refeições, apesar de que, varado de fome do jeito que eu estava, não seria uma má ideia, especialmente se dona Fátima fizesse aquele delicioso arroz doce ou a sopa dos deuses que ela faz! Mas naquele primeiro dia eu ainda não sabia o que estava perdendo.
Portanto, o que fiz foi deixar minhas malas no quarto, tomar uma boa ducha e sair a explorar aquela cidade milenar da qual eu tinha ouvido falar muito no curso de Letras porque muitos de nossos maiores poetas (e.g. Gregório de Mattos Guerra) estudaram lá. Assim também, pela chamada Questão Coimbrã (uma briga ideológica entre poetas portugueses), pelos estudos sobre o antigo
Igreja da Santa Cruz
dialeto moçarábico, por causa das histórias dos reis de Portugal, entre eles D. Afonso Henriques, e, obviamente, pelo fado e guitarra de Coimbra pelos quais um dos meus professores de Literatura Portuguesa era doido.
Descer a Rua Saragoça era uma contemplação da bela e antiga Coimbra. Pode-se chegar à parte baixa por quatro caminhos a partir de lá e qualquer um que se pegar, é maravilhoso por conta da vista e da arquitetura. Por onde for, também, a Cabra - nome da torre do sino da Faculdade de Direito - é vista, parece mesmo que ela é ubíqua, se impondo no alto da colina, quase como uma sentinela de tempos longínquos, a guardar a cidade e seus cidadãos. Mas eu só iria vê-la de perto mais tarde. Agora, descendo aquelas ladeiras silenciosas, cortadas pelos passos calmos de um ou outro transeunte, eu só queria um lugar para aplacar a minha fome.
Vendedor de castanhas na Praça 8 de Maio
Não foi custoso encontrar, pois o centro da cidade está cheio de cafés, pastelarias e restaurantes. Na Praça 8 de Maio (ao lado da Igreja da Santa Cruz), por exemplo, há um café restaurante muito famoso e muito frequentado. Não estive nele, embora sempre pensasse em entrar.
Eu fui, no entanto, quase todos os dias, parar num café restaurante próximo à estação de trens Coimbra (A), chamado Estação Doce, onde eles servem refeições deliciosas, e onde eu, de sobremesa, sempre pedia brigadeiro (se servem doce do nosso país, por que não comê-lo para matar a saudade de casa um pouquinho?) para acompanhar meu chá preto com leite - a bebida foi um costume aprendido dos meus anfitriões em Dublin há alguns anos. A Mônica, funcionária do restaurante, quando via que eu já terminara a refeição, logo perguntava: "Chá preto com leite e brigadeiro?" e sorria. Como disse anteriormente, Portugal não me deixou, em nenhum dia, ser apenas mais um na multidão.
Maurício e eu nas escadarias de Coimbra
Na Estação Doce, encontrei um amigo brasileiro que está fazendo doutorado na cidade e de lá fomos percorrer Coimbra, a subir e descer ladeiras, a descer e subir ladeiras, escadarias enormes, atravessar pontes sobre o Mondego, a contemplar a vista de cima da colina da Universidade. Coimbra brilhava tremeluzente com as luzes do sol poente sobre suas casas e seus monumentos. O Maurício e eu andamos por mais de três horas não apenas pelo centro, mas por várias partes da cidade que ele conhecia como um nativo. Acabamos por parar em sua casa para o jantar e lá a grande surpresa: um delicioso pene al pesto preparado por ele, e uma garrafa de vinho tinto junto com um bilhete de Feliz Aniversário e ingressos para o Festival de Filmes Alemães que aconteceria no teatro Gil Vicente a partir do dia seguinte, e onde, após o jantar, fomos encontrar seus amigos. E eu pensando que, longe de casa, meu aniversário passaria batido. Mas é como disse o Riccardo, "Em Coimbra tudo acontece".

Vista panorâmica de Covelos - Foz de Arouce






Um Lugar chamado Covelos - Foz de Arouce
Entrada de Covelos
Por volta das 9 horas, dona Fátima me levou à estação rodoviária de onde eu deveria tomar o autocarro para Foz de Arouce - pode-se também tomá-lo próximo à estação de comboios Coimbra (A). Tinha procurado na Internet sobre horários de ônibus e conduções para lá, mas não encontrei nada. Então, caso você deseje conhecer Foz de Arouce e Covelos, e não puder dirigir, é tomar o ônibus que sai em direção a Vila Nova de Poiares, o valor até Covelos é 3.05 euros. O ônibus vai te deixar na entrada de Covelos, se você andar um pouco mais para a frente, sobe uma ladeirinha e vai chegar - depois de uns vinte minutos andando - na vila de Foz de Arouce.
O caminho de Coimbra até Covelos é de uma
Antiga casa de moagem - Covelos, Foz de Arouce
beleza espetacular. Totalmente cênica, com vilas, rios, pontes e muitos bosques, a estrada nos faz esquecer que vamos de um centro urbano a outro e nos dá a sensação de que estamos aonde poucos homens chegaram, tamanha a faixa de mata preservada e a pureza das águas cristalinas do rio que corta todo o percurso. Fui conversando com o senhor Ricardo, o motorista do autocarro, que me deu várias dicas de lugares para comer, o que visitar, como ir, enquanto estivesse na região. Me indicou, por exemplo, não deixar passar a oportunidade de comer as lampreias e a chanfana, pratos típicos da sua vila, chamada Penacova, aonde eu também teria de ir em busca de meus ancestrais, Quando o ônibus chegou diante da placa de Covelos, o senhor Ricardo me disse: "Olha bem o relógio, fazes o que tens de fazer, mas lembra-te de estar na paragem no horário, pois o último autocarro é este, quando eu voltar". Dormir ao relento, num lugar tão frio e enevoado, não era minha opção. O senhor Ricardo partiu em direção a Vila Nova de Poiares e eu fiquei na estrada, olhando um lado e outro sem ver viva alma, me perguntando o que fazia ali.
Olhei o relógio, tinha menos de três horas para ver o máximo que podia. Atravessei a rua, e fui descendo a estreita ladeira de terra que corta a entrada do vilarejo. Olhei para um lado e outro e tudo o que vi foi névoa e casas feitas de ardósias, mato e oliveiras, e um córrego cristalino. Continuei andando à procura de alguém, mas nem as chaminés, nem as glebas nos fundos das casas me davam sinal de que aquela não era uma vila de onde todos os moradores houvessem emigrado para o Brasil, como meu trisavô e seus irmãos. No caminho, uma casa me chamou a atenção por uma inscrição sobre um nicho, uma oração dedicada ao lugar de Covelos e à mãe do escritor. Parei, fotografei. Dias depois vim descobrir que aquela era a casa onde meu trisavô nasceu e cresceu e de onde ele saiu para o Brasil deixando sua irmã Delfina Maria e seu cunhado José Vaz Colaço como proprietários. A chamada Casa da Eira, de Covelos, ali, diante de mim, com suas paredes de pedra, era uma das quintas que Domingos Dias Brandão havia deixado em Portugal e de que eu tanto ouvia falar quando criança.
Rio Ceira - Foz de Arouce
Contornei a casa, e fui ladeira acima. Passei por uma capelinha, reconheci nomes de ruas e propriedades que havia encontrado nos assentos de batismo e casamento em minhas pesquisas: "Rua do Cabeço", "Rua da Portelinha", e assim vai. Todas as portas continuavam fechadas, o único sinal de vida foi um cachorrito que começou a me seguir, latindo para talvez quebrar a monotonia do lugar, e me levou direto à casa onde sua dona arava a terra. Perguntei a ela se conhecia alguém da família Vaz Collaço (a resposta eu dou num post mais adiante sobre árvore genealógica); fiz o percurso de volta à estrada e fui parar no outro lado da rua, a caminho de Foz de Arouce. Aquela vila invadida por franceses e que derrotou o inimigo, se mantendo fiel às suas tradições lusitanas.
Igreja de São Miguel de Foz de Arouce
Atravessei a ponte, vi o monumento aos heróis que venceram os franceses, sentei numa das várias mesas para piquenique no Parque das Merendas a fim de forrar meu estômago que àquela altura já roncava. Na tranquilidade daquele lugar, diante das águas cristalinas do Rio Ceira correndo à minha frente, pássaros chilreando sobre minha cabeça e cabras e ovelhas brincando e balindo por ali perto, pus-me a pensar em como a vida naquele lugar não deve ter mudado tanto nos últimos cem anos. Não fosse o barulho de carros cortando o silêncio da vila de alguma rara vez em alguma rara vez, aquele seria o mesmo lugar em que meus ancestrais viviam, a mesma paz que eles tinham, a mesma vida serena e tranquila.
Voltei a caminhar, explorar a vila, a me deparar com portas e janelas fechadas e o barulho do vento
Placa indicando localidade em Foz de Arouce
Rua de Foz de Arouce
que cortava o dia. Um cachorro veio ao meu encontro, manso, querendo carinho naquele sítio onde só fachadas coloridas de casas antigas lhe faziam companhia. Passei pela Quinta Brandão, um dos maiores e mais conhecidos produtores de vinho da região. Era a única casa aberta pelo caminho. Não entrei, aqueles Brandão eram de outra família, a minha tinha emigrado para o Brasil. Vi um restaurante aberto, entrei em busca de um cafezinho quente. Lá dentro havia um casal de senhores e o dono, todos almoçando. Ao ouvirem meu sotaque, logo começaram uma conversa muito interessada no que eu estava fazendo ali, tão longe de casa. Conversamos um bom tempo, todos tinham parentes que viviam no Brasil, especialmente em São Paulo. Os jovens do lugar estavam indo embora da vila por conta de emprego e de novas aspirações existenciais, por isso a cidade parecia tão deserta. Me recomendaram voltar no verão. Os velhinhos se levantaram, me desejaram boa sorte e partiram. Quando eu estava para sair, entrou um moço a quem logo o dono do restaurante me apresentou como sendo o filho do presidente da Junta de Freguesia, com quem eu poderia obter toda a informação de que precisasse sobre Covelos. O rapaz, em plena hora do almoço, me levou a sua casa, me apresentou seu pai e, com toda cortesia e hospitalidade portuguesas às quais eu já me estava acostumando, me convidou a almoçar com a família. O senhor Padrão se mostrou extremamente prestativo e interessado em minha história, e ali, com ele, minhas buscas tomariam novos rumos, sobre os quais falarei em outra oportunidade.
Voltando da lida - Covelos - Foz de Arouce
Durante nossa conversa, uma ou outra pausa para ouvirmos o noticiário sobre o surto de Zika vírus no Brasil e como ele estava chegando a Portugal. Olhei o relógio, era hora de correr à parada de ônibus pois o senhor Ricardo estaria passando dentro de alguns minutos e eu deveria voltar a Coimbra. Me despedi do senhor Padrão e de sua gentilíssima família, marcamos a minha volta e peguei meu rumo, correndo feito louco para não perder o ônibus. Quando cheguei à "paragem", uma senhora meio enfezada, que chegava em Covelos, me perguntou o que eu tanto "andava a fotografar". Quando lhe expliquei os meus motivos familiares, ela logo abriu um sorriso e me pediu meu endereço eletrônico para acompanhar minha viagem e descobertas.
O senhor Ricardo chegou, no ônibus apenas ele e eu a conversar até estarmos em Coimbra com o sol
de inverno que já começava a se pôr no horizonte.

Vila Nova de Poiares - Terror no Cemitério
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Fui a Vila Nova de Poiares numa terça-feira. A ideia era conhecer o lugar e fotografar as localidades de onde vinham meus ancestrais (Ribas, Algaça, Pereiro de Baixo, Redouça, Mocela, entre outros) e as duas igrejas nas quais vários deles foram batizados, casados e sepultados no decorrer de 300 anos. Mas tive que esperar o ônibus por um bom tempo. Os ônibus intermunicipais em Portugal - pelo menos nas regiões onde estive - demoram muito a passar e têm horários extremamente complicados. Por isso, se você vai precisar de se locomover entre localidades no país, o melhor é alugar um carro, do contrário, perde-se muito tempo e vê-se muito pouco. Eu havia deixado minha carteira de motorista em Salvador (geralmente se pode dirigir com a habilitação brasileira em vários países estrangeiros, mas dê uma lida aqui para maiores informações, afinal, melhor é prevenir que remediar: http://www.denatran.gov.br/informativos/20070611_permissao_internacional.htm), portanto, o negócio era mesmo tomar meu chazinho de cadeira sempre que precisasse ir para alguma localidade não atendida por comboios.
Rua no centro de Vila Nova de Poiares
Ao sair da estação rodoviária, logo me deparei com mais uma vila onde não víamos ninguém, ou quase ninguém, a depender da rua onde entrássemos. Fui caminhando a explorar o centro da cidade, onde encontrei um senhor a quem pedi informações sobre a localização das igrejas de Santa Maria de Arrifana e de São José das Lavegadas. O senhor me disse que ambas eram muito distantes para ir andando, pois ambas estavam nas freguesias de mesmo nome, que o ideal seria ir de carro, pois passaria quase o dia inteiro andando para chegar lá. No entanto, me apontou o caminho que eu deveria seguir. Após caminhar bastante pelo centro daquela vila tão charmosa, fui parar no cemitério. À porta dele estava sentado um senhor, com uma boina portuguesa, a quem perguntei se estava no caminho certo para a igreja de Santa Maria de Arrifana. Ele me apontou outro caminho e me disse que era muito longe, que melhor seria... ter um carro. Como estava à porta do cemitério, entrei para ver se encontrava o jazigo de algum parente. No meio-tempo, inventei de tirar uma foto do lugar, que achei superorganizado e limpo. De repente, quando estava saindo, um homem alto e magro postou-se no centro da avenida entre onde eu estava e a entrada. Os braços cruzados, o rosto rígido, o corpo plantado como o capitão de exército diante dos flancos inimigos. Saudei-lhe com um bom-dia, ele me respondeu: "Posso saber o que estava a fotografar?", eu lhe respondi que fotografei
Igreja de Sta Maria de Arrifana
apenas a avenida principal do cemitério. Ele, com a mesma pose: "Com ordem de quem você fez a fotografia?", eu: "Com a ordem de ninguém. Como o cemitério é um local público, pensei que não tivesse problema fotografar". O homem enrijeceu mais o semblante e mandou: "Pois aqui, para fotografar, há que ter a minha permissão. Agora vai me levar exatamente onde fez a fotografia para me mostrar o que fotografou". Eu senti minhas bochechas queimarem, de vergonha. Lhe disse que, se ele quisesse, eu apagaria a fotografia e acabávamos a conversa por ali. Lhe expliquei o porquê de ter ido ao cemitério, ele começou a relaxar o rosto, seu tom ríspido deu lugar a um tom mais afável, compreensivo, e me pediu que o seguisse. Chegamos diante de um barracão, ele entrou, pediu que eu o acompanhasse, não tinha motivos de postar-me à porta. Olhei para um lado e outro, não vi o senhorzinho de boina, que sumira desde que meu imbróglio começara. Pensei: "se eu entrar, o senhor de boina vai trancar a porta e eu serei preso e amordaçado aqui dentro e ninguém saberá do meu paradeiro!". Senti a adrenalina correr, minhas pupilas dilatarem, o coração pulsar mais rapidamente. Todos os filmes de terror que vira passavam como um rio em minha memória. Preparei a ginga para golpear meu agressor com um rabo-de-arraia, uma queixada, uma ponteira, uma meia-lua, ou qualquer outro golpe de capoeira que meu instinto lembrasse. Me aproximei do homem que buscava algo dentro de uma caixa. O coração a mil. Ele sacou o celular, fez uma ligação à junta de freguesia contando minha história e pediu a atendente que me ajudasse, "Pronto, tudo resolvido. Agora você vai lá, vê exatamente onde estão seus familiares e volta aqui. Se calhar, eu mesmo o levarei à Santa Maria de Arrifana.". Estendeu a mão e com um
Igreja de S. José das Lavegadas
aceno disse que me esperava de volta. Passei pelo portão onde o senhor de boina estava sentado a apreciar a vista da vila e fui parar na Junta de Freguesia onde não puderam me ajudar, uma vez que aquele cemitério era do início do século passado e meus ancestrais seguramente não estariam lá. Pedi a moça que agradecesse ao zelador e que lhe explicasse o motivo de eu não voltar ao cemitério. Desci para a rodoviária onde ficaria por três horas esperando a condução de volta a Coimbra.
Para passar o tempo, comecei a escrever minha aventura num caderno que comprei quando meu laptop deu pau. Ao virar para o lado para observar a rodoviária antes de descrevê-la, vi o anúncio de táxis afixado à porta de entrada. Pensei no tempo que esperaria pelo autocarro, pensei no nada que iria fazer ali sentado. Vi todos os números da lista, escolhi um no "Papai do Céu mandou...", liguei. Uma voz feminina atendeu, falei com ela onde estava e pedi que me mandasse um táxi, ela me disse que o motorista era ela e que chegaria em três minutos. Dito e feito. Partimos para a Igreja de Santa Maria de Arrifana, onde ela, conversando com o rapaz que arrumava a igreja, conseguiu que eu entrasse e de lá fomos para São José das Lavegadas por ladeiras extremamente íngremes e sinuosas ao ponto de me gelarem a espinha.
Monumento "O Cristo"
Minha motorista e eu fomos conversando por todo o caminho. Ela me mostrou várias casas fechadas pelos lugarejos e ruas e me disse que muita gente tinha ido para o Brasil e outros para países da CEE em busca de trabalho, mas que agora muitos jovens estavam retornando devido a incentivos do governo para a agricultura e empreendimentos familiares. No entanto, as ruas continuavam desertas. Pedi a minha condutora que em vez de me levar de volta à rodoviária, me levasse para a vila de Lousã, onde poderia encontrar um dos novos amigos que fiz em Coimbra e que em Lousã trabalhava e residia. Ela me deixou no Centro da vila e eu liguei para o André a avisar-lhe que estava por lá. Ele, feliz com a notícia, me indicou um café-bar bem bacana, a Taberna Burguesa, cujos donos haviam vivido em Salvador por muitos anos e onde eu poderia comer alguma coisa enquanto ele saia do trabalho.
Conheci o André quando fotografava uns monumentos em Coimbra. Ele me viu fotografar uma fonte e logo me perguntou se eu sabia a história por trás dela. Daí, ao ouvirmos os sotaques tupiniquins ecoados por nós ambos, logo surgiu aquele sentimento de irmandade que aparece entre conterrâneos em terras estrangeiras. Foi o André quem me levou a conhecer vários lugares em Coimbra, por sinal, lugares que turistas geralmente não frequentam, porque estão fora dos roteiros batidos.
Centro da Vila da Lousã
Meu amigo me levou até o castelo da Lousã - o vi apenas por fora, pois já era noite - e de lá rumamos de volta a Coimbra, o André rindo às gargalhadas com meu momento de pânico no cemitério de Vila Nova de Poiares. Mas agora, pensando friamente no caso, não tiro a razão ao funcionário do cemitério. Afinal, estava sob a responsabilidade dele, e ele tinha de zelar pelo lugar. Sua postura foi a de alguém que leva a sério o seu trabalho.
Terminamos a noite num restaurante muito bom chamado Solar do Bacalhau, onde o Bacalhau ao Forno quentinho e o vinho da Quinta do Sobral me fizeram sorrir satisfeito por estar vivo.

"O 'adeus' de Tereza" - como diria Castro Alves
Francesca, eu e Teresa - Jardim Botânico - Coimbra
Coimbra é um lugar onde, para várias de minhas perguntas, consegui respostas  que pudessem completar meu quebra-cabeças genealógico. Lá visitei lugares que puseram fim a uma busca de duas gerações, mas, sobretudo, Coimbra é mais um lugar de que eu lembrarei pelas pessoas que conheci e pelas amizades que fiz.
Foi lá, por exemplo, que fiquei bem mais próximo de Teresa e Francesca, e que, pela primeira vez em tantos dias de convivência, vi nos olhos de minhas amigas um sentimento de melancolia e saudades misturadas, de tristeza, como a que senti ao deixar Aveiro. Acredito que seja assim que todos nos sentimos ao deixar Portugal: com um sentimento de vazio, de incompletude, de ruptura com algo maravilhoso que encontramos.
Arco de Almedina
No último dia delas na cidade, resolvemos ir andando, conversando, trocando experiências, rindo, comendo. Fomos a vários sítios interessantes, a alguns dos quais eu não conhecia como a Quinta das Lágrimas, o Jardim Botânico, e suas histórias de amor e suicídios. Conversamos sobre literatura brasileira e portuguesa, fiz uma lista de música e livros de ambos os países que elas pudessem ler e escutar para aprimorar suas experiências linguísticas. Trocamos ideias, fizemos planos para as próximas férias: Brasil, Itália, Portugal. Portugal parecia sempre ser a melhor opção. Encontramos o Riccardo, que me surpreendeu com todo o seu conhecimento sobre a cultura brasileira e a riqueza de informações que ele tinha sobre o Brasil, de sorte que até me contou três versões para a lenda da índia Iara. Ele faz mestrado na Universidade de Coimbra, mas como lhe disse, seu vasto conhecimento sobre o Brasil e a nossa cultura me fez duvidar se ele estava estudando no país certo. Continuamos os quatro a pisar aquelas ruas de pedras e paralelepípedos mais antigos que todos nós juntos, passamos pelas muralhas guardiãs e fomos parar na República dos Fantasmas, onde nosso amigo residia. Lá, mais uma surpresa, para nos despedirmos das meninas, o Riccardo fez um delicioso chimarrão! Isso mesmo, um chimarrão à gaúcha! com direito a barulhinho no final e tudo!  mas é como ele diz sempre: "Em Coimbra tudo é possível", inclusive um italiano fazendo chimarrão para esquentar o frio de fim de tarde.
Praça da Canção - Parque do Choupaninho
Deixei minhas amigas na estação, corações apertados, saudades já batendo à porta juntas com as lembranças das nossas caminhadas e descobertas, e rumei, lentamente, na direção de casa. Sentindo o vento frio da noite portuguesa, olhando o Rio Mondego correr, milenar com suas águas crispadas pelo vento. Recitando, intuitivamente, o poema de Castro Alves, que eu tinha esquecido de dizer a Teresa:

"A vez primeira que fitei Tereza,
Como as plantas que arrasta a correnteza,
A valsa nos levou nos giros seus..."

Talvez não a valsa, mas o fado, a guitarra de Coimbra, a voz taciturna, sofrida do fadista nas tabernas da velha cidade.

"Coimbra tem mais encanto na hora da despedida"
Ou assim diz a música popular, e é apenas quando estamos de partida, em pé na estação de comboios
Competição de Kayak no Rio Mondego - Coimbra
que sentimos todo o peso dessa verdade. Começamos a pensar em tudo que estamos deixando para trás, nos lugares que visitamos, nas pessoas que conhecemos, na comida que experimentamos, nos fados que ouvimos, na vida borbulhando em todo o redor, na paz de sentarmos no parque e ver as corridas de kayak, os enamorados, os atletas, as aves voando livres.
Pensamos em tudo o que não iremos mais fazer ali e, por isso, tudo se torna bem mais encantador.
O táxi me deixou na estação Coimbra B (de onde se parte para Lisboa) apenas 4 minutos antes do trem expresso partir. Quando cheguei ao balcão de bilhetes, a atendente me disse: "Corre, põe a mala em qualquer vagão e vai andando até o teu.". Foi o que fiz, arrastando minhas malas superpesadas de souvenirs que levava para os entes queridos e garrafas de vinho que ganhei dos amigos. Mas, enfim, era hora de dizer tchau, sentar-me no meu assento e esperar Lisboa chegar dentro de alguns instantes.
Olhei pela janela do trem, o céu escurecia, as luzes de Coimbra começavam a ficar para trás, e eu me lembrava das palavras de Maurício: "Na verdade, Coimbra tem mais encanto da segunda vez que voltamos aqui". Descobrirei em tempo. Agora era fechar os olhos e esperar a próxima estação.

O que ver em Coimbra:
Feira próxima ao  mosteiro de Sta Clara, a Velha
Universidade de Direito de Coimbra;
Igreja da Santa Cruz;
Sé Velha;
Sé Nova;
Museu Machado Castro;
Portugal dos Pequenitos;
Arco de Almedina;
Ponte Pedro e Inês;
Jardim Botânico;
Biblioteca Joanina;
Igreja de São Tiago;
Mosteiro de Santa Clara a Velha;
Mosteiro de Santa Clara a Nova;
Feira ao ar livre em frente ao Mosteiro de Santa Clara, A Velha (que ocorre no 1o sábado de cada mês);
Sé Velha - Coimbra
Escada do quebra-costas;
Pátio da Inquisição;
Parque do Mondego;
Praça do Comércio.

Fora da Cidade:
Figueira da Foz;
Serra da Estrela;
Conímbriga

Onde Comer em Coimbra:
Estação Doce;
Solar do Bacalhau;
Café Bar A Caldeira;
Café Febica (dentro de uma antiga igreja na Rua de Sofia)
The World Needs Nata;
Galeria Santa Clara (ao lado de Portugal dos Pequenitos);
Restaurante da Rodoviária (por incrível que pareça, o restaurante, simples, é muito bom e a comida deliciosa. Quase todos os dias de manhã tomava café lá)

Coimbra tem mais encanto na hora da despedida: 









quarta-feira, março 23, 2016

Europa em 60 dias - Aveiro, Portugal - Em busca das origens - Parte I

Ponte 25 de Abril vista do Cristo Rei - Lisboa (foto: Johann Morriseau)
Saí de Dublin todo agasalhado por causa dos -2 graus que fizeram com que John precisasse jogar água quente nos vidros do carro para derreter o gelo acumulado da noite, e cheguei em Lisboa com um calor imenso de 16 graus (um baiano chamando 16 graus de quente, inemaginável, não é? passe um mês no frio e me diga depois ^_^). Antes de alcançar o sanitário do aeroporto para mudar de roupa, já estava suando bicas arrastando minha malinha pelos corredores como se puxasse o cadáver abatido de um companheiro de guerra pelo Sahara, tamanho o calor que fazia meu cansaço, o sono, a leseira, se agigantarem em mim. 
Troquei o suéter, o sobretudo e as botas cheias de meias de lã por uma fina e confortável camiseta de 1.99 euros e um tênis Olympicos superleve, peguei minha mala grande que estava no aeroporto há um mês, paguei minha taxinha para retirá-la e me mandei para o hostel a comer e dormir. Não consegui dormir, pois passaria apenas um dia em Lisboa antes de ir para o meu próximo destino, então, era aproveitar o que aquela bela capital tinha a oferecer. O dia seguinte, cedíssimo, era hora de ir para a rodoviária, tomar o autocarro (pode-se ir de comboio também) e partir rumo a Aveiro, o coração a mil, a imaginação e a expectativa enchendo meus pensamentos.

Aveiro, a cidade da Ria
Pôr do sol em Aveiro
Como disse no post anterior, minha ida a Portugal tinha sido motivada por uma questão genealógica iniciada em abril de 2014 quando comecei a fazer as pesquisas sobre meus ancestrais. Um dia, cheguei da casa de minha tia com a certidão de nascimento de minha avó em mãos e, ao ligar o computador, resolvi pôr o nome do avô dela na pesquisa do Google; a partir disso fui parar na cidade de Ílhavo, distrito de Aveiro, Região Centro, Sub-região do Baixo Vouga, cujo foral foi-lhe dado pelo rei-poeta D. Diniz no ano de 1296, e que anteriormente era conhecida pelos romanos como Illiabum, mas sobre a qual eu nunca tinha ouvido falar até aquele dia (escreverei, mais à frente, um post sobre minhas pesquisas genealógicas que já me fizeram conhecer a história de minha família até meados de 1500). 
Não consegui me hospedar em ílhavo, pois os valores de hotéis e pousadas que eu achei estavam fora
Centro de Aveiro
da minha realidade monetária para tantos dias que me eram necessários ficar por lá. Encontrei, no entanto, um alojamento legal, num sobrado antigo e rústico, muito parecido com os que encontramos nos centros históricos coloniais de cidades brasileiras antigas. O Fernando's Guest House fica bem no coração da cidade de Aveiro, no distrito de mesmo nome. Por isso, assim que saltei do ônibus logo cheguei ao lugar que, apesar de simples, está numa rua tranquila e tem um ambiente muito bom; o quarto em que fiquei era bem arejado e limpo, com vista para a rua, a cama muito confortável, me dando a sensação de que eu estava em casa. Não posso esquecer também que a dona do alojamento é uma portuguesinha hipersimpática e prestativa, do tipo que nos deixa super à vontade, sentindo-se no aconchego do nosso lar, especialmente porque na cozinha há café e chá à nossa espera em qualquer hora - um cafezinho quente no friozinho da noite portuguesa sempre é bem-vindo. 
Inscrição no moliceiro
De Aveiro ao Ílhavo são aproximadamente 20 minutos de autocarro (que passa a cada uma hora, mais ou menos), então, não seria problema me hospedar ali. Especialmente porque a cidade é linda e tranquila e as pessoas locais sempre gentis e amistosas. É mais uma cidade onde se deixa o coração e se reza para termos a oportunidade de voltar.
Aproveitei que o ocaso se aproximava e fui perambular pelas ruas a fotografar e descobrir a existência de uma palavra em português europeu que jamais escutara no Brasil: Ria, que segundo informação do Wikipédia é, "em termos gerais, um braço de mar que adentra a costa e que está submetido às marés", mas que para mim era simplesmente um lindo canal cheio de peixes, cortando a cidade, por onde circulam os moliceiros - barcos parecidos com gôndolas que antes eram usados para tirarem os moliços (plantas aquáticas que são usadas na agricultura), e que hoje levam turistas acima e abaixo, num passeio superagradável pela cidade. Uma curiosidade sobre os moliceiros é que todos eles têm umas inscrições cômicas em uma das extremidades, algumas de cunho erótico, outras religiosos, outras de ditos populares, mas todas muito engraçadas. Para mais informações sobre o distrito e gente de Aveiro, sugiro o site do historiador Fernando Martins: http://pela-positiva.blogspot.com.br/.
Moliceiros na ria de Aveiro - Portugal
Sentei na praça em frente à ria para comer um doce delicioso e típico de Aveiro, feito de ovos e hóstia, chamado "Ovos moles". 
Os ovos moles de Aveiro, segundo me contou o dono da pastelaria onde os comprei, tiveram origem nos conventos da região, onde as freiras, após engomarem as roupas com a clara dos ovos, usavam as gemas que eram aproveitadas como doce para não serem jogadas no lixo. Depois que os conventos acabaram, as senhoras educadas pelas freiras continuaram a fazer os doces. Hoje pode-se comer os ovos moles de duas formas, ou se compra uma barriquinha e as enche com eles, ou se compram eles envoltos em hóstias. De uma forma ou de outra, eles são deliciosos! Comi vários deles com um cafezinho com leite e sem açúcar - pois os ovos moles são doces o suficiente - pra esquentar a noite que chegava com pontos brilhantes no céu. 

Praia da Costa Nova, Farol da Barra - Ílhavo
Casas típicas da Costa Nova - Ílhavo
Aproveitei que o dia seguinte era um sábado de sol invernal e rumei para a praia da Costa Nova, aonde um amigo que fiz durante minhas pesquisas me indicou que fosse. Enquanto passava minha horinha de chá de cadeira na "paragem do autocarro", um rapazinho que esperava a mãe de sua namorada vir pegá-lo no ponto puxou assunto comigo. Ao ouvir meu sotaque, me encheu de perguntas sobre o Brasil e sobre a Seleção e me pôs na parede querendo saber se eu achava Neymar melhor que (Cristiano) Ronaldo, o melhor do mundo. Eu, que não sou fã de futebol e que não sei nem o que é um goleiro, joguei a pergunta de volta pra ele com um "ora, a resposta é óbvia, o que você me diz?". Aí, ele voltou a se empolgar e o papo continuou até que sua namoradinha e a mãe dela chegaram, me ofereceram uma carona e partiram sem mim, pois íamos em direções opostas.
Não demorou muito tempo, um rapaz de aparência oriental chegou ao ponto e se aproximou

Surfistas na praia da Costa Nova - Ílhavo
perguntando em inglês se o ônibus para Costa Nova (pronunciou o "s" chiado) já havia passado. Eu disse que também o estava esperando e aí foi conversa que não acabou mais.
Descobri que meu novo amigo vinha de Taiwan e que estava em Aveiro a trabalho por um mês. Aquela seria a sua penúltima semana na cidade e ele estava aproveitando o tempo para passear um pouco. Já havia ido ao Porto e me recomendou enfaticamente visitar a cidade que fica a apenas uma hora de trem de Aveiro, me deu todas as instruções, o valor do comboio e o que eu poderia visitar na cidade - um roteiro turístico completo. 
Meu amigo Taiwanês e eu passamos o dia juntos caminhando pela linda Costa Nova e Barra, trocando informações sobre a cultura dos nossos países e compartilhando as experiências em Portugal, e tudo de maneira muito natural, como se fôssemos velhos conhecidos que acabavam de se reencontrar após longas datas e punham o papo em dia - maravilhas que acontecem quando se viaja e se encontra pessoas abertas ao mundo. Em dado momento de nossa conversa, alguém lembrou-se de perguntar os nomes, eu, como de costume ao falar com estrangeiros que falam inglês, disse, fazendo a mímica: mar-see-you (como em "I see you", "eu vejo você"), ele riu e nunca mais esqueceu - ninguém esquece! "E o seu?", eu perguntei. Ele naturalmente me disse "Yoshi". Eu fiquei em silêncio, num silêncio constrangedor, lembrando do
Farol da Barra
meu jogo favorito da infância, olhando para ele, com cara de paisagem, querendo perguntar. Ele entendeu e me respondeu, "Você conhece o jogo Super Mario Bros., não é?", eu disse que sim, ele continuou "Então, é igual ao do dinossauro". Eu ri. "E eu pensando que minha técnica de memorização de nomes era infalível! A sua que é. Você apelou para a memória sentimental. Nunca mais se esquece seu nome! Yoshi, Cadê Luigi, o rei Copas?". Ele começou a gargalhar e a gente continuou andando enquanto ele me contava a história daquele nome, que não era o dele mesmo, mas uma aproximação de sons. O seu nome real era bem mais complicado e decidimos que Yoshi estava legal.
O papo estava tão bom, que a gente foi andando até chegar ao Farol da Barra sem sentir o tempo passar, O farol  é o mais alto de todo Portugal e o segundo maior da Península Ibérica, do qual os portugueses - pelo menos os de Aveiro - têm um orgulho imenso. Ele foi construído a partir de 1885 e tem 62 metros de altura. Fica na praia da Barra, na freguesia da Gafanha da Nazaré, concelho de Ílhavo, e de cima dele dá para se ter uma visão incrível do lugar. Nós não pudemos subir, pois na porta, estava afixada uma nota dizendo que o farol está aberto à visitação às quartas-feiras apenas. Mas mesmo de fora, a imponência dele, a beleza dele na paisagem, já enchem os olhos. Sentamos na praça em frente ao farol e o Yoshi, cheio de saudades de casa, me contou a lenda da deusa Matsu, protetora dos velejadores e marinheiros, e de como ela tinha morrido ao se lançar no mar para salvar seu pai e seu irmão. Ficamos contemplando o farol por mais alguns minutos, calados, pensando na deusa Matsu e seu ato de heroísmo. Discutimos o assunto do heroísmo dos deuses e homens e aquele papo filosófico encheu a gente de fome.
Homens pescando na praia da Barra - Ílhavo
Voltamos andando pela praia à procurar um lugar para comer e encontramos um restaurante café superarrumado quase sobre a areia onde eu apresentei a Yoshi a famosa francesinha portuguesa. Ele comeu para lamber os beiços e dizer "é muito bom, é muito bom!".
Depois da barriga cheia, era hora de voltar para a cidade de Aveiro. Fomos andando pela praia, pelo cais, sem pressa. Conversamos com pessoas locais nas lojas de souvenir e no calçadão, ouvimos histórias parecidas contadas por lábios diferentes sobre o lugar e sua gente e suas atrações. Sentamos a esperar o ônibus e no meio-tempo podemos apreciar uma regata que estava ocorrendo por lá. As praias da Costa Nova e da Barra são excelentes para a prática de esportes como futevôlei, futebol e vôlei de areia, frisbee e de esportes náuticos. Para lá vão surfistas, kitesurfistas, velejadores, canoístas e afins, além de pescadores, banhistas e gente que quer apenas desfrutar da beleza e calma da praia de areia bege e fofa. Também a localidade é famosa pela culinária, especialmente pelo bacalhau e pelas deliciosas enguias fritas,  as quais eu tive o prazer de desfrutar no tradicional restaurante Marisqueira em companhia de meu amigo e historiador gafanhense, o Sr. Fernando Martins, enquanto saboreávamos um delicioso vinho verde e ele me regalava com as histórias do lugar e do povo. 
Antes de vermos o fim da regata, o ônibus chegou e com ele a noite se aproximava. Descemos em Aveiro, me despedi de Yoshi, que se tornaria meu companheiro de caminhadas e janta durante todo o tempo que fiquei na cidade, e, como tinha comprando um ingresso para o novo Star Wars,
Regata na Costa Nova do Prado - Ílhavo
fui encerrar minha noite vendo Harrison Ford e companhia. 
No cinema, que fica no shopping center local chamado Fórum Aveiro, aconteceu um fato curioso. Estava eu lá vendo meu filminho tranquilo com os dez ou onze outros espectadores quando, do nada, no meio do filme, as luzes se acenderam, eles começaram a tocar música brasileira e algumas pessoas saíram da sala. Olhei para o casal ao meu lado e perguntei o que estava acontecendo, se o filme tinha dado problema, se teríamos de voltar no dia seguinte, se tinha pegado fogo na Babilônia. O rapaz me disse que não me preocupasse, dentro de poucos minutos o filme voltaria a rodar, era só um intervalo. Recostei na minha poltrona e fiquei lá ouvindo Caetano Veloso cantando pra São Jorge até o intervalo acabar. 

Cidade de Ílhavo
Monumento da cidade de Ílhavo
Na segunda-feira, logo cedo, fui conhecer a cidade de Ílhavo atrás de informações sobre meus ancestrais e os irmãos de minha avó que ficaram lá. O ônibus que sai de Aveiro deixa a gente na porta da Câmara Municipal, prédio onde funcionam vários órgãos públicos de que eu precisava para minha pesquisa.
Depois de encontrar as informações em uma e outra sala, fui andar pela cidade para conhecê-la um pouco. Caminhar naquelas ruas pacatas de paralelepípedos e calçadas de pedras portuguesas, olhar as casas de azulejos coloridos, a arquitetura que me lembrava o barroco colonial da Bahia, me fez sentir passeando por Santo Antônio Além do Carmo, em Salvador, e a igreja de São Salvador do Ílhavo me fez pensar na igreja do Senhor do Bonfim. Pude entender porque meu bisavô se sentia tão em casa na cidade da Bahia que voltou a morar e casar por aqui duas vezes.
Praça Central da cidade de Ílhavo
Entrei na igreja, sentei no banco, fiz uma prece. Olhei aquele lugar por muito tempo, emocionado. A igreja é simples, sofreu algumas reformas, mas a pia batismal antiga ainda estava lá. Pensei em meu bisavô sendo batizado, meus trisavós, os pais deles e assim vários ancestrais antes deles. Pensei nos casamentos que ali se fizeram e nas composições sacras que meu trisavô João da Rocha Carolla tinha escrito e nas vezes todas que elas devem ter sido executadas no órgão da igreja. Meu coração estava cheio de uma emoção nova; eu estava extasiado.
Saí da igreja para continuar minha caminhada pelo Museu Marítimo de Ílhavo e Aquário da cidade, onde aprendi muito sobre a história dos ílhavos e a pesca do bacalhau. Lá se pode também ver um aquário imenso com bacalhaus vivos se aproximando do vidro para nos dizer um "Olá, como estás?". Depois, cansado de tantas andanças, fui à praça central para descansar antes de voltar a Aveiro e lá encontrei um senhor sentado no banco a tomar o sol frio que brilhava no céu azul. Puxei conversa com ele perguntando se conhecia a família de meu bisavô e, do longo papo que se seguiu, pude encaixar mais peças ao meu quebra-cabeça genealógico (mas sobre isso falarei em outro post).
Igreja de S. Salvador de Ílhavo
No final do dia, retornando a Aveiro, as emoções já em ordem, ao voltar para o Fernando's Guest House conheci minhas vizinhas de quarto: duas italianinhas gente boníssima que estavam passeando por Portugal há algumas semanas para praticar o português que aprendiam no curso de Letras na Universidade de Turim. Novas amizades pela frente, uma boa caminhada pela ria sob o céu estrelado.

Quando dizer adeus dói
No distrito de Aveiro eu experimentei fortes emoções e conheci lugares e pessoas maravilhosos. Desde a cultura religiosa, à culinária, à paz e tranquilidade das praias de areia levemente  bege, à amistosidade e receptividade do povo, às casas coloridas típicas e aos famosos "palheiros" da Costa Nova, Aveiro nos transporta para um mundo moderno que está embebido de uma aura antiga. Onde as pessoas apressadas pelo dia a dia não têm pressa, onde se sentam para um café e conversam com alegria, onde sorriem cordialmente e te fazem sentir incluído no seu ambiente, onde parecem ter o prazer em receber o forasteiro
Sobremesa de frutas cobertas com ovos moles
e compartilhar com ele daquilo que lhe é próprio. Não é à-toa que todos as pessoas de lá que me deram o prazer de suas companhias se tornaram instantaneamente queridas para mim. Desde o meu amigo historiador Fernando Martins, à dona da pousada, aos Pedro e Abel - atendentes do restaurante Sabores do Mercado, no Fórum Aveiro, aonde eu ia jantar todas as noites -, aos pesquisadores e o pessoal do atendimento no Arquivo Distrital de Aradas, à velhinha da venda, dona Maria, que sempre me dava uma cavaca quando eu aparecia por lá, ao primo que conheci, aos senhores na praça de Ílhavo, enfim, parece mesmo que todos que me chegaram pelo caminho - até os não-portugueses - em Aveiro vinham saídos de um mundo que está desaparecendo das nossas vidas urbanas cotidianas.
Entre essas pessoas, ainda há o Luís Shark, uma pérola da música jovem gafanhense e um campeão da vida.
Havíamos nos conhecido há mais ou menos um ano em um grupo do Facebook e, na minha ida a Aveiro, não pude deixar de encontrá-lo pessoalmente.
Luís Shark  em seu show
Marcamos de nos ver num bar hipermassa na Gafanha da Nazaré chamado Porão Restbar onde a galera jovem se encontra para uns goles, uma conversa, umas músicas, enfim, para descontrair. Quando cheguei, o Luís já estava lá, sentado numa grande mesa de madeira tamborilando com os dedos algum arranjo que ele, músico talentosíssimo, provavelmente estava criando.
Ficamos conversando por horas sobre tantas coisas da vida e do mundo, sobre as superações dos obstáculos que a vida nos impõe, sobre o não prostrar-se diante das adversidades; sobre assuntos pesados e leves; sobre qualquer coisa que nos vinha à mente, como é natural acontecer com alguém cuja prosa é tão fácil. O Luís mesmo, pela sua história, é um desses gigantes que não se deixam abater, que transformam as agruras do destino em caminhos a serem galgados e superam o que a vida traz de mal, pegando o leme da existência na sua mão e conduzindo seu barco para os mares que lhe aprazem. Muitas vezes transformando a vida em música e projetos musicais a fim de ajudar a existência de outros através da arte e da cultura, proporcionando a outros sonhar, pois como ele mesmo diz "vida sem sonhos é como um céu sem nuvens, um passo mal dado".
E assim, entre um gole e outro de café com o Luís ou com os outros camaradas que encontrei, se confirmou em mim que essa minha viagem tinha sido mais sobre pessoas e a aventura humana e a bênção de conhecer vidas e histórias do que visitar lugares e coisas.
Por isso, Aveiro fica na minha memória não só como o lugar de onde um de meus bisavós saiu a singrar os
Trenzinho saindo da estação de Aveiro
mares para realizar o sonho do conquistador de novos mundos, mas como um porto seguro, uma parada obrigatória para as próximas viagens que eu fizer às Terras Lusitanas; um sítio aonde eu fui procurar por histórias dos mortos e encontrei gente viva, espontânea e cordial que enriqueceu minha viagem e a minha própria história.

Para mais sobre o Luís, acessem aqui: https: https://www.facebook.com/LuisRocha.Singer/?fref=ts

e escutem:


Museu da Cidade de Aveiro
O que fazer/ ver em Aveiro:
Passeio de moliceiro na Ria de Aveiro;
Praia da Costa Nova;
Farol da Barra;
Igrejas e o Museu da Cidade de Aveiro;
Festa de São Gonçalinho (em maio) onde cavacas são jogadas da torre da capela de São Gonçalo como forma de pagamento de penitências (cuidado com a cabeça);
Comer as enguias fritas, cavaca e ovos moles.

Onde comer em Aveiro:
Sabores do Mercado do Fórum Aveiro;
Zig Zag Café e restaurante;
Marisqueira (Costa Nova);

Mais sugestões? Me diga e as postarei aqui.

Para mais sobre o que ocorre em Aveiro, acesse: https://www.viralagenda.com/pt/aveiro



sexta-feira, março 18, 2016

Europa em 60 dias - Dublin e Irlanda do Norte - Reencontros e Descobertas

Amanhecer no Centro de Dublin




























Tinha me encantado pela Irlanda quando fui um estudante em Dublin. Não só as paisagens magníficas do país, mas a amistosidade do povo, a sensação de segurança e bem-estar, e mesmo os vários dias de céu nublado e o cheiro do vento, fizeram com que eu me apaixonasse pela Ilha Esmeralda. 

No entanto, confesso que estava meio receoso de voltar ao país, pensei que esse encanto da primeira vez poderia ser perdido tão logo eu desembarcasse em solo irlandês. Mas não foi assim. Quando, no aeroporto de Budapeste, comecei a ouvir as conversas daquelas pessoas de sotaque caraterístico e sorriso largo que estavam comigo na fila da Ryanair, logo fui inundado de uma nostalgia maravilhosa.

Me engajei num papo gostoso com meus companheiros de voo e até fui corrigido por uma senhora que parecia a Filomena do filme de mesmo nome quando, diante da confusãozinha que se formara em frente ao portão de embarque, lhe falei a palavra "line" para dizer que havia uma fila única para todos os voos.

Ela olhou para mim com seu sorrisinho leprechaunico e me disse: "você quer dizer 'queue'. Você não quer ser diferente de nós, não é?", e me piscou o olho esquerdo para confirmar a pergunta que mais parecia uma ordem. Eu lhe sorri de volta e disse, "Não, eu sou quase um Irish, right?!", pronunciado /Óirish, róish/. Ela aplaudiu alegremente meu sotaque fake e respondeu que sim. Embora fosse diferente, já me sentia um pequeno homem de barba ruiva com trevo de quatro folhas na lapela do meu casaco verde. 

Costume House e Rio Liffey - Dublin



E essa sensação se intensificou quando saí pelos portões do Aeroporto Internacional de Dublin e senti o cheiro daquela cidade que já se havia impregnado em mim, mas estava adormecido em minha memória. Dublin tem um cheiro todo próprio, de chuva, frio e relva verde que se entranha nas narinas como o perfume de uma mãe querida.

Fui andando pelos corredores, sorvendo aquele ambiente, aquela atmosfera, o cheiro da cidade. Sabia que meus amigos já esperavam por mim na saída e que deviam estar preocupados com minha demora pensando até que havia tido algum problema no controle de passaportes, uma vez que o grande número de brasileiros no país é feito tanto por gente muito boa como por gente ruim, que leva seus costumes danosos para onde se dirigem e, por isso, os passaportes brasileiros têm sido vistos com (muito) mais precaução que antes. 

No entanto, minha demora se dava por eu apenas caminhar lentamente pelos corredores, lembrando todas as vezes que entrei e saí daquele aeroporto. Naquele momento, sentia o coração acelerado pela emoção de estar de volta à cidade que se tornou um dos mais queridos cantos do mundo para mim, e pela antecipação de rever meus amigos aos quais tinha encontrado em Salvador exatamente um ano antes daquele dia, quando, em férias, eles foram me visitar.

Centro de Dublin 





















Abraços dados, saudações trocadas, sorrisos felizes, deixamos minhas malas em casa e os melhores anfitriões da Irlanda me levaram para um rango superdelicioso, à irlandesa, bem perto do lugar onde morei, mas aonde eu nunca tinha ido. O ambiente é superlegal, jovem e descontraído e a comida deliciosa. Recomendo uma visita ao Hogs & Heifers de Swords e as costelas assadas que eles fazem lá! 

Entre comida, bebida e música, colocamos o papo em dia e fizemos o roteiro para a minha estadia. Pois Dublin era o único lugar para o qual não tinha feito nenhum plano, apenas queria chegar lá, depois, era só seguir o vento, afinal, havia tanto o que fazer na cidade, tanto para rever, e alguns lugares fora dali para conhecer.

Happy Hour no Johnnie Fox's


Um desses lugares foi um pub supertradicional - desde 1798 - e totalmente Irish chamado Johnnie Fox's - digo "totalmente irlandês", porque na região do Temple Bar, no Centro, há muitos turistas, então, os pubs tomam uma configuração para estrangeiro ver -, com música irlandesa tradicional, muitos pints de Guiness, um delicioso Baileys coffee para esquentar, e velhinhos irlandeses conversando sobre a vida. 

Esse pub é chamado de o "Pub mais Alto da Irlanda" e está a uns 30 ou 40 minutos do Centro da cidade, já na região das montanhas de Wicklow. O staff é totalmente gentil - tiraram até nossas fotos e nos explicaram várias coisas sobre a cultura do lugar -, e o pub é frequentado majoritariamente por irlandeses - cerca de 98% das pessoas que estavam lá eram nativas.

Os Pubs irlandeses são lugares para onde se deve ir quando se quer realmente sentir a vida do país. Pois eles são para os irlandeses o que as praias são para nós: um lugar aonde todos vamos sem pestanejar.

Bushmills, Giants' Causeway, Carrick-a-Rede e Dark Hedges - Irlanda do Norte
Dark Hedges - Irlanda do Norte




















A Irlanda do Norte é sempre um dos destinos certos para quem estuda ou visita a República da Irlanda. Geralmente as pessoas vão a esse país que, embora esteja na mesma ilha, faz parte do Reino Unido e não da República da Irlanda (por isso a moeda não é o euro, mas a libra esterlina), para visitar o Museu do Titanic, o Giant's Causeway (um conjunto impressionante de milhares de pedras de basalto que se encaixam perfeitamente como se tivessem sido postas para formar uma calçada), Carrick-a-Rede, onde há a Ponte de Corda; e agora, também, as Dark Hedges (uma avenida de faias bicentenárias enormes que se entrelaçam criando um cenário incrível), que ficaram famosas porque viraram palco para o último episódio da primeira temporada de Game of Thrones.

Eu, entretanto, não havia ido lá. Fiquei adiando a viagem até que não deu mais para ir. Por isso, assim que o sol raiou (fala-se figurativamente aqui, pois o "sol raiar" no inverno irlandês chega até a ser uma escolha sarcástica de vocabulário), nós nos arrumamos, corremos para o carro e nos mandamos a ganhar a estrada e o dia.

A chuva fina caía incansável sobre o teto e vidros do carro enquanto estávamos na M1, o céu cinzento contrastando com o verde vivo do mato e das plantações ao lado da estrada, música brasileira, irlandesa, pop rock, alterativa, tocando no repertório, o tempo passando a quase 100 km por hora ao passo em que gradativamente víamos o meio-fio de verde, branco e laranja mudar para azul e vermelho, e as cores das placas informativas mudarem de verde para azul, e um Union Jack (a bandeira do Reino Unido) voar tímido e solitário no mastro, nos mostrando que deixávamos a República da Irlanda e entrávamos na província de Ulster (nome irlandês da Irlanda do Norte). 


Torre Redonda em Bushmills




Quando me dei conta das transformações, meu coração começou a gelar. Me lembrei do IRA, me lembrei de protestantes e católicos, me lembrei do ódio entre irmãos, e da placa Baila Atah Cliath (nome de Dublin em irlandês) no carro. Olhei para John, ele parecia tranquilo, Olhei para Carina, ela também estava tranquila. 

Perguntei se estava tendo algum problema recentemente, ele disse que não havia nada sério, que as coisas estavam bem há muitos anos. Desanuviei a mente, voltei a me perder na vista e nas ruínas de casas antigas no caminho. A paisagem é tão bucólica, tão única, que mesmo nos mostrando pastos por quilômetros quadrados, torres redondas da época dos celtas e povoações tímidas despontado aqui e ali, não nos enfada nunca.


Mini Fry e chocolate quente- The Copper Kettle




















Antes de chegarmos ao Giant's Causeway, precisamos parar num posto. O dono do lugar, ao nos ver chegar, levantou-se da cadeira onde estava do lado de fora da loja e meteu-se por trás balcão, seu olho reluzia, sua cara estava tesa, tensa. Nós entramos, o saudamos, ele respondeu com um aceno de cabeça rígido e quase imperceptível. 

Entrei no banheiro, rezando. Saí para ver a cara de John e de Carina em pânico, me pedindo para correr porque o homem tinha ido buscar uma picareta para quebrar o carro inteiro. Todos começamos a gritar como loucos, pedindo ajuda, procurando um esconderijo! Mas é claro que isto não é verdade, pelo menos não a parte dos gritos e das picaretas, falei só pra criar um climinha de expectativa.

A verdade é que, quando saí do sanitário, todos continuavam no mesmo lugar. O John e a Carina ao lado da porta me esperando, O homem teso atrás do balcão nos olhando como se fôssemos criminosos, aliás, remoendo o ódio pelo que o John representava para ele: a rebeldia irlandesa que deu um basta ao imperialismo britânico. 

Carina me disse que não havia lanches lá e fomos embora. Meus pelos arrepiados pelo olhar malévolo do homem que, após nós arrancarmos com o carro, saiu de dentro da loja, cuspiu no chão e disse alguma coisa inaudível. Olhei para os meus anfitriões, todos estávamos aliviados. "Ainda há gente que guarda rancores", comentou o John.

Como - graças a Deus - não encontramos rango na loja de conveniências, paramos numa vila próxima ao Giant's Causeway para forrar o estômago. Lá encontramos um restaurante muito ajeitadinho e confortável, com uma comida boa e barata, chamado The Copper Kettle (O Bule de Cobre) e, diferentemente do sujeito no posto, os funcionários do restaurante nos receberam hiperbem. 

Havia lá também um grupo de ciclistas que fazia a Rota Cênica da costa da Irlanda. Todos muito animados, comendo proteínas e gordura e bebendo café quente para enfrentar o frio e os quilômetros que os esperavam pela frente. Quando saímos do restaurante, John chamou minha atenção para a vila, me dizendo que há dois anos, quando ele esteve lá, havia várias bandeiras da Union Jack (aquela bandeira azul com uma cruz vermelha e branca) penduradas pelos postes, mas que agora não havia nenhuma. Talvez as coisas estejam mesmo ficando no passado, apesar de alguns ressentidos.

O céu começou a abrir, o sol apareceu tímido, bem tímido mesmo, mas suficiente para que aproveitássemos nosso passeio. No Giant's Causeway há uma recepção bem confortável, onde podemos aprender tanto a história quanto a mitologia envolvendo o lugar. Há também um café muito bom. Nosso guia chegou e descemos com ele para explorar a atração. O vento frio sempre presente quase quebrando nossos ossos e fazendo nossos narizes correrem rios, parecia não dizer nada ao guia que permanecia sem luvas nem proteção  para o rosto- um herói!



O sapato que Finn deixou para trás na batalha




























Lá fomos nós parando aqui e ali a ouvir histórias interessantes sobre a formação geológica do Causeway; sobre a mulher que vendia cachaça dizendo que vendia água vinda de uma nascente ali mesmo para burlar as leis contra bebida alcoólica; sobre os mitos do camelo Humphrey e do gigante Finn, e as /stiuunes/ (stones, pedras), como nosso guia falava em seu sotaque nortenho, que Finn pôs ali para lutar com o gigante escocês. Mostrando que, enfim, a lenda é sempre mais interessante que a geologia para quem fez Letras.

De lá fomos à Rope Bridge, em Carrick-a-Rede. Uma ponte de madeira e cordas que liga a ilha ao um penhasco de onde, em outros tempos, os pescadores saiam para fazer suas pescas e checarem suas redes de salmão na solidão fria do mar da Irlanda.

A sensação de caminhar na ponte num dia de vento forte é única. Embaixo de você há um abismo
azul e pedras escorregadias e agudas, e nas laterais só umas cordas que, apesar de seguras, parecem fios de barbante ao vento. Olhar para baixo é uma opção para os de coração forte. Manter o foco à frente, uma opção para quem quer continuar prosseguindo sem receios maiores. Eu fui andando, ignorando o vento, concentrado apenas na minha chegada. Carina do outro lado me gritava: "Olha pra baixo, Márcio!" olhei! quase me borrei todo!


Rope Bridge - Carrick-a-Rede



O vento soprando, balançando a ponte me deu vertigem. Quase parei no meio, senti o sangue correr do rosto, das mãos, meus amigos falando "vem logo", e eu lá com aquela cara de "Ai, meu Deus, o que eu vim fazer aqui!". Quando enfim cheguei ao outro lado, o alívio, a alegria de estar vivo, a sensação de quem conquistou o mundo, me possuíram. Carina bateu no meu ombro e me disse: "agora quero ver é voltar". 

Olhei para trás, o vento balançava a ponte, incansável. Quando saímos de lá, o sol já estava quase se pondo, fomos diretos ao Dark Hedges. Havia um grupo de turistas brasileiros com quem eu logo socializei. O cara mais falante do grupo, um paranaense que estava morando em Dublin há dois anos e parecia ser um guia turístico, começou a descrever o local para seus amigos, contando a história do lugar e do porquê tinha se tornado mundialmente famoso, eu aproveitei e fiquei só nas entocas ouvindo tudo. Valeu, colega, pela explicação gratuita.

Fotos tiradas, chuva fina começando a cair de leve, voltamos para Dublin. À noite três horas parecem infindáveis. Dormi pra só acordar em casa.

De volta a Dublin - onde está Molly Malone?!


Postes do Centro de Dublin


















No dia seguinte, que foi cheio de bons reencontros e surpresas, saí de Swords, com o céu ainda escuro, em direção ao Centro naquele ônibus double-decker que há tanto tempo eu não pegava. Olhei os rostos das pessoas recém-acordadas, silentes, sentadas nas poltronas azuis confortáveis, as chácaras ao redor, o cenário bucólico na maior cidade da Irlanda, na capital do país. 

Um sentimento de melancolia doce me envolveu. Percebi o quanto de saudade eu sentia daquele lugar calmo, de gente tranquila e amistosa.

As coisas estavam diferentes, embora parecessem iguais. O trajeto do ônibus não era exatamente o mesmo, a ponte em frente ao Eden's Quay (/ki/) tinha sido terminada, o centro da cidade sofria várias intervenções para as novas rotas dos Luas (os trens de Dublin).

 O dia amanheceia lento enquanto eu saltava do double-decker e caminhava pelas ruas frias. Antes de ir reencontrar meus antigos professores, fui dar uma volta pela Grafton Street, agora sem as pedras vermelhas que a calçavam, delas restam apenas resquícios em algumas vielinhas e na rua onde há a estátua de Philip Lynott, da banda Thin Lizzy. 

O Stephen's Green, no entanto, continuava igual: os patinhos, gaivotas, galinhas d'água, fazendo festa no lago, gente sentada nos bancos comendo seu café da manhã, esquilos correndo por aqui e acolá. Eu fui caminhando lentamente, Sentei diante do lago e, por instinto, comecei a cantar João Gilberto, baixinho: "...quiet talks and quiet dreams, quiet walks by quiet streams...", me perdi na minha música e na paz do lugar. 

Uma senhora que passeava com seu cachorro parou diante de mim e me disse: Que bela música! Que voz suave! posso te ouvir cantar?". Eu, totalmente sem jeito, disse que sim. Ela sentou-se ao meu lado e pediu que eu repetisse a mesma música. Eu, com cara de bolacha, comecei a cantar. No final ela aplaudiu e me disse: "Eu adoro ouvir as pessoas cantarem, faz a vida tão mais bonita! E numa manhã tão escura as músicas sempre fazem o dia brilhar".

 E aí  me perguntou qual era a língua da segunda parte da música. O resto vocês já sabem onde foi parar: Brasil isso, Bahia aquilo, Salvador aquilo outro. Ela se despediu, com um aperto de mão e um sorriso imenso, e lá se foram ela e seu cachorrinho pequeno e desengonçado, cuja raça eu não tenho ideia qual seja.


Feira da Moore Street





















A Irlanda é assim: pessoas calorosas e gentis, dias frios e cinzentos. A Dublin de Molly Malone continuava a mesma na essência, embora algo tenha mudado aqui e ali. Aliás, a própria Molly Malone não estava mais na Grafton Street. Sua estátua de bronze havia sido retirada, devido às obras do Luas, do lugar onde repousara por algumas décadas. "In Dublin fair city I didn't first set my eyes on sweet Molly Malone" que não estava mais lá "crying cockles andmussels alive, alive, oh!". 

No entanto, sua presença podia ser sentida ao cruzarmos a Grafton de volta ao Trinity College, ao Bank of Ireland, à Dame Street onde eu fui rever meus antigos professores com os quais tive uma manhã maravilhosa de lembranças e conversas calorosas. Meu Deus! como o tempo passou sem passar! 

Aquelas pessoas de mentes brilhantes, de doçura suave, de conversa fácil, estavam ali, muito felizes em me rever e saber notícias minhas. Tantas pessoas passaram por eles, mas ainda assim eles lembravam de detalhes de meu período de estudante. Meu dia foi maravilhoso assim - revendo a linda cidade, reencontrando amigos, voltando aos lugares aonde costumava ir, e terminando num pub no centro da cidade à noite onde fomos ver um show de música e dança irlandesas esquentadas com um Baileys coffee (fiquei viciado nele).


Adeus também foi feito pra se dizer "bye-bye, so long, farwell"


Pôr do sol em Skerries - Co. Dublin
















No meu último dia na cidade, nós fomos a uma vila próxima a Swords, Co. Dublin, à beira-mar, chamada Skerries, a qual eu não conhecia, mas aonde recomendo a todos darem um pulinho. O lugar, como todas as vilas irlandesas que conheci, é muito tranquilo e convida à meditação, bonomia e paz de espírito.


A vila em si é formada por duas grandes ruas e há lá também alguns monumentos bem interessantes como um forte construído pelos ingleses para sua defesa contra Napoleão Bonaparte, e torres redondas. Lá, fomos almoçar num restaurante muito bacana chamado Blue Bar Café, O ambiente é muito familiar, o lugar requintado, o staff atencioso e a comida com valor muito bom.

Com o sol que se punha, chegava a hora de arrumar as malas e alçar voo. Não sei bem o que estava sentindo ali, mas com certeza era uma sensação boa, uma alegria em saber que Dublin da primeira, da segunda, da milésima vez, continua sempre um lugar especial. Meus receios iniciais não tinham fundamento. 

A cidade continuava e por muito tempo ainda será, como me disse o vendedor de souvenirs em Budapeste, "uma segunda casa" para mim. Especialmente porque Dublin não é monumentos, ou parques, ou chuva e frio apenas, é emoção. Minhas memórias são afetivas, por causa de todo mundo que conheci lá, de todas as amizades que fiz, de todas as lembranças boas que fiz antes e agora.

Carina, John e eu caminhamos em direção a um playground próximo à Torre Redonda e ficamos a observar o mar e a ilha aonde, dependendo da maré, podemos ir caminhando. Sentamos no cais a conversar e a falar da vida enquanto o sol se punha e as estrelas começavam a despontar no céu. 

A noite seria longa, iríamos à festa de aniversário de Felipe, meu amigo e conterrâneo de Salvador que estava morando em Dublin de tanto que eu enchi a cabeça dele sobre o lugar. A festa seria num pub bem bacana no centro, e a conversa regada a totó, risadas, comida boa e Glucosade.

Às quatro da manhã, parti de volta a Portugal. Começaria a segunda etapa da minha viagem, aquela para a qual eu tinha voltado à Europa em primeiro lugar: a busca pelas minhas raízes e história de meus ancestrais.  Me despedi dos meus queridos anfitriões e entrei pelo saguão do aeroporto internacional de Dublin, com uma sensação de saudade antecipada se apoderando de mim.

Recomendo assistir ao vídeo - The Dubliners - Molly Malone




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