quinta-feira, fevereiro 17, 2011

A beleza está lá fora

Não me lembro em qual de seus livros eu li, mas me lembro nitidamente da sensação de choque e frustração que Nietzsche me causou ao dizer que ler um livro de manhã cedo, enquanto a vida rebrotava lá fora, era obsceno.


Eu, professor de literatura, metido a escritor nas horas vagas, aspirante a filósofo fiquei aturdido com o grande F.N. propor que se largasse de lado a literatura e mesmo a chamasse de obscenidade! É claro que minha reação foi dizer para mim mesmo: que Nietzsche era louco varrido todo mundo sabe, deixa ele pra lá e vamos continuar lendo!


No entanto, esses dias, voltando da formatura de um ex-aluno, as palavras do bigodudo do F.N. voltaram à minha mente como fantasmas errantes que não querem sair de onde estão e arrastam correntes, e fazem "bu", e empurram corpos pelo chão.


Eu lia um livro de contos de Rubem Alves, com a cortininha da janela ao lado fechada enquanto meu ônibus cortava a estrada ladeada por mata atlântica e fazendas de cacau. Eu lá, concentrado nas letras do boníssimo professor enquanto a natureza passava ao meu lado, sem que eu me desse conta; a Mata Atlântica, talvez em seus últimos resquícios, passando despercebida por meus olhos que teimavam em não se deslocar do papel amarelado impresso em tipografia preta, tinta cinza, nas páginas que passavam e que só pararam de dançar nas minhas retinas autômatas quando a voz de uma criança, excitadamente maravilhada, ecoou dizendo, "mainha, olha lá um monte de miquinhos na árvore".


Há tanto tempo não via um miquinho! há tanto tempo não via um pé de cacau ou de café! há tanto tempo não via um ipê amarelo! há tanto tempo não via a natureza verde de verdade juntinho de mim, que eu pus o meu Rubem Alves de lado, abri a cortininha do ônibus e olhei! Mas olhei com olhos extasiados, como aquela criança que chamara a atenção de sua mãe e de todo o ônibus pela alegria, pela surpresa enorme de ter visto um miquinho na árvore verde no meio da estrada - por certo ela, como eu, estava com os olhos carregados do concreto de Salvador, dos prédios crescendo em todos os lugares, já nem lembrava do verde da Paralela ou do Cabula, que vem sendo destruído impiedosamente para abrigar os condomínios de luxo, ou melhor, as Gottham City modernosas. Gottham Cities que levantam seus muros-fortalezas para manterem ao longe a leva de favelados que cresce a cada dia em seu entorno...


E os miquinhos foram ficando para trás, perdidos no meio da mata verde e densa, de onde eu ousei inspirar profundamente aquele ar puro, aquele cheiro de terra e orvalho e vento puro que todo o meu corpo sentia até ouvir a voz de minha consciência me pedindo que olhasse para o outro lado, onde jazia solitário o meu livrinho de palavras tão sábias, de contos tão gostosos de se ler.


Eu tomei meu Rubem Alves na mão e disse: "Professor, o senhor me perdoe, suas 'Estórias de quem gosta de ensinar' são maravilhosas, mas agora, vou deixar minha alma ser preenchida pelo livro da natureza, pela 'aura mediocrita' e pelos ecos do 'fugere urbem' que a contemplação da vida me traz. Vou ficar aqui, contemplando as árvores que passam, as antigas fazendas de cacau, um bichinho no mato, o vendedor de água em algum desses postos perto de uma cidade, a cidadezinha ficando para trás, os rios e córregos que seguem seu curso eterno, e mesmo a nuvem que nunca mais será formada igual. Mas prometo, à noite, no silêncio sonolento das paredes brancas do meu quarto, eu volto a lê-lo com prazer. Porque agora o que vale mesmo é trocar o cinza pelo colorido da Costa do Cacau, da Costa do Dendê e da vida, rebrotando ao redor, porque de manhã chega a ser obsceno ler um livro quando tudo está nascendo.



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