Quando eu cheguei a Paris não sabia exatamente
o que esperar. Tinha apenas as referências dos livros que havia lido – especialmente
os de Balzac –, dos filmes que tinha visto, e, obviamente, dos relatos de
parentes e amigos que voltavam de lá encantados e apaixonados, com os olhinhos
brilhando e cheios de graça como se tivessem tido uma experiência religiosa. Para
mim, no entanto, Paris era uma colcha de retalhos que se amontoavam entre Louis
XIV, Os Três Mosqueteiros, Revoluções, cabeças decapitadas, Marias Antonietas, manifestos
comunistas, Corcundas de Notre Dame, Rimbauds, Renoirs, escargots, baguetes com
frois-gras, e Charles Aznavour comendo macarrons com Edith Piaf em algum café. Um
lugar onde as pessoas andavam “bras dessus, bras dessous en chantant des
chansons” com as caras felizes, vendo pintores de boinas e bigodinhos finos
levando tapas das mulheres com cabelos no sovaco. Pondo em palavras agora, vejo
que minha visão era meio conturbada e quimérica, algo entre o esotérico e o psicodélico.
Mas Paris não é nada disso, ou talvez seja tudo isso e muito mais. Talvez seja
uma festa aonde todos nós somos convidados a entrar e de onde saímos com o
coração pesaroso por deixá-la para trás.
E se Paris é uma festa, para mim foi uma festa
de Réveillon. Cheguei lá para as celebrações de final
de ano e para reencontrar
meus amigos
Globe Trotters Fabrício e
Gabi (
http://www.projeto101paises.com.br/),
que não via há mais de um ano, e visitar um amigo francês que tinha conhecido
no avião num voo da Bahia a Amsterdam alguns meses antes. Nessa união do útil
ao agradável fui surpreendido de formas diferentes e cheio de sentimentos
ambivalentes em relação à Cidade Luz.
Ao descer no aeroporto de Beauvais fui recebido
com um sorriso esfuziante do agente da imigração que segurava meu passaporte e
dizia “Brésil, hein!!! Neymar!!!”, e eu, com cara de quem tinha passado a
madrugada acordado no aeroporto e não dormido no voo, respondia com um sorriso
amarelo “oui, oui! Neymar, Pelé, Ronaldô, Carnaval” e pensava “bate esse
carimbo logo, seu moço!”. Meu amigo Johann já deveria estar me esperando no saguão
enquanto o agente conversava comigo sobre sua ida a Bahia e como a “Chapadá” era
bonita. Mas apesar do cansaço, é sempre bom ser tão bem recebido por pessoas
que têm uma visão tão alto astral da sua terra, especialmente em tempos
nebulosos.
Saído da imigração, minha mochila nas costas, o
ar frio da França nos pulmões foi me revigorando lentamente. Encontrei meu
amigo e fomos a caminho de Paris. Como estava cedo, fomos dar uma volta pela
cidade. Não sei bem o que eu senti naquele momento, mas me recordo de pensar “meu
Deus! Eu estou em Paris!”. Não sei por que pensei assim, nunca fui do tipo
deslumbrado, mas a emoção quando chega às vezes nos mostra faces nossas ainda
desconhecidas. E o Johann começou a me contar as coisas interessantes sobre os
franceses. Me lembro que a primeira coisa que me disse foi: Márcio, escute bem,
nós franceses acreditamos que somos os melhores, não somos, mas acreditamos que
somos. Nossa comida é a melhor, nosso país é o melhor, nossa língua é a melhor.
Por isso, quando você for sair, se lembre de sempre falar em francês com as
pessoas, caso precise de alguma coisa”. E eu pensei: Ai, mô Pai, com esse meu
francês enferrujado... to lascado!”. Mas aí ele mudou de assunto e começou a
contar as histórias das ruas por onde passávamos, entre elas, uma que me deixou
meio sem jeito. Ao passarmos por um parque nas proximidades da Torre Eiffel ele
disse, aqui é perigoso você andar à noite, há muitos michés chamados “Brésiliens”,
em busca de programa e muitas vezes ocorrem episódios de violência”. Isso era
dizer que os putos da França eram brasileiros e que eram violentos. Fazer o
quê, né? Cada um se vira como quer.
A arquitetura de Paris, a organização de ruas e
avenidas, a disposição dos prédios, as alamedas de
árvores desnudas pelos
ventos do inverno, o sol brilhando frio no céu azul, logo tiraram minha mente
dos “Brésiliens” decadentes. O som do francês bem articulado de Johann, a Bossa
Nova na voz de Henri Salvador na rádio, e a percepção de estar trafegando pelas
ruas sobre as quais lia nos livros de história trouxeram um sentimento de
conquista, de Neil Armstrong na Lua. Mas a bandeira cravada era a brasileira,
do Brasil de Catarina Paraguaçu, de Santos Dummont que voou sobre ali no 14
Bis, da música inventada por João Gilberto e Tom Jobim que havia conquistado os
franceses desde a década de 60. Era o Brasil na França de forma torta ou
direita, mas o Brasil.
E aí, chegamos à Torre. Quando estávamos
estacionando, porém, a surpresa. Me transportei de volta às ruas de Salvador ou
do Rio – as lembranças da terrinha nunca saem de nós. Nem havíamos saído do
carro quando um grupo de 30 a 40 imigrantes (provavelmente) senegaleses, com
mochilas nas costas e sacolas pesadas nas mãos, corriam desbandeirados pela
rua, gritando “Allez! Allez! e fugindo do RAPA. Sim, tem RAPA em Paris! Os imigrantes
ficam pelos pontos turísticos vendendo souvenirs da França sem pagar impostos. Então,
vez ou outra, como acontece por aqui, a polícia chega e leva tudo embora e
prende os vendedores, boa parte dos quais está ilegal no país. A maioria deles
é africana, há alguns do oriente médio também. Quando eu vi aquele monte de
homens correndo em nossa direção, pensei que estivesse acontecendo algum
atentado a bomba. Meu amigo viu minha cara de pânico e logo tratou de me
acalmar, me explicando a situação. A Paris dos meus romances e filmes piegas já
não estava tão deslumbrante assim. Na verdade, estava muito semelhante às
cidades brasileiras que eu conheço. Mas vá lá, a Torre Eiffel continua linda! E
dali a alguns dias eu estaria de volta a ela. Esperando ver um show de fogos de
artifícios e música eletrônica pra esquentar a noite.
Esperei ansiosamente pela noite do réveillon
sem comentar com meus amigos sobre minhas expectativas. Apenas aguardava
enquanto fazia meus passeios, desbravava a cidade, desenferrujava meu francês e
viajava pela terra do Homem da Máscara de Ferro – falarei sobre tudo em outros
posts.
O dia 31 veio cheio de novas aventuras. Eu estava
hospedado na casa de meu amigo, mas no dia 31 e 1º resolvi ir para um hostel
mais ao centro da cidade sob os protestos de Johann e sua família que me diziam
“on ne peut pas croire, Marciô. Tu dois rester chez nous! Un hostel!”. Mas eu
fui, afinal, se a noite é uma criança, em Paris é ela é um feto em formação. Especialmente
no último dia do ano. Queria andar pelas ruas até de manhã, chegar em casa
bêbado de café com chocolate e dormir até o pé fazer bico sem incomodar a
rotina de uma família tão gente boa e acolhedora.
Me lembrei que se estivesse em Salvador, teria
ido à praia de manhã, visto o pôr-do-sol na Ponta de Humaitá e depois me
reunido com a família para agradecermos ao Eterno pelo ano que passou. Depois,
era cada um pra um lado à procura de festas e muvuca. Em Paris, passamos o dia
rodando, encapotados, caminhando no frio sob a deliciosa garoa fina que ia e
vinha abençoando nossa caminhada. Visitamos catacumbas e museus. Comemos baguetes,
falafels e crepes imensos com Nutella. Batemos perna o dia inteiro. Vimos a
cidade viva, sentimos o cansaço morto e fomos para o hotel onde meus amigos
estavam hospedados.
Por volta das 22 Gabi resolveu fazer uma
pequena ceia de Ano Novo com coisas que havíamos comprado no mercado no caminho
de volta ao hotel deles. Uma macarronada deliciosa para restaurar as forças dos
andarilhos! Nos deliciamos com o banquete, brindamos, fotografamos, e saímos para
ver a despedida do ano junto à Torre Eiffel, onde Johann e alguns
amigos seus iam nos esperar.
Não é necessário dizer que metade da população
teve a mesma ideia e as estações de metrô se empanturraram de residentes e
turistas felizes. Mas tudo de forma ordeira, sem tumulto, sem agonia. Alguns dos que seguiam conosco levavam garrafas de champanhe nas mãos, outros iam com elas
dentro da sacola. Localizamos nosso anfitrião e ficamos conversando, conhecendo
gente e contando o tempo para a agonia começar. Paris é uma festa! Mas não uma festa cheia de fogos de artifício,
luzes coloridas no céu, shows musicais e champanhes explodindo, conforme descobrimos
alguns minutos antes da meia-noite. É isso mesmo: nem fogos, nem vela, só uma
torre amarela, sem música, sem bombas, sem barulheira. Se é o oposto disso o que você
procura, na véspera de ano novo não vá à Paris porque será uma imensa decepção.
O governo parisiense não se dá ao desfrute de queimar milhares de euros num
show pirotécnico de 15-30 minutos como se faz no Brasil e em outras partes do
mundo, nem gasta verba pública pagando artista para cantar pro povo; o máximo
que fazem é acender as luzes da Torre Eiffel à meia-noite como piscas-piscas de
Natal – por isso, é melhor estar por lá do que no Arco do Triunfo onde o único
sinal da virada do ano é o grito da populaça ensandecida, mas muitos
desavisados vão para lá e voltam com cara de tacho.
A festa propriamente dita está no simples fato
de nos encontrarmos na Cidade Luz, nas largas ruas cinzentas e frias
sustentando seus vetustos prédios de cimento e mármore que contrastam com a
decoração de luzes coloridas, desde as proximidades do Louvre ao Arco do
Triunfo, e que estão cheias de stands de comidas típicas do mundo inteiro,
inclusive churrasco brasileiro. A alegria se dá por estarmos cercados por
estranhos que te abraçam ao “badalar dos sinos” (utilizo a expressão apenas ilustrativamente,
uma vez que a crescente comunidade muçulmana francesa reivindicou do governo
que proibisse o repicar dos sinos das igrejas cristãs por se sentirem ofendidos;
mesma razão pela qual você não verá ou ouvirá pelas ruas ou lojas nenhuma das
bandeirinhas ou musiquinhas de Joyeux Noël - Feliz Natal), e gritam, pulando
com você “Bonne Année! Bonne Année!” ou qualquer expressão semelhante em suas
próprias línguas maternas.
Outra curiosidade é que essa folia toda se dá
sem que as pessoas estejam bebendo, pois é proibido ter garrafas de bebida
alcoólica nas ruas. Portanto, não leve sua bebidinha para celebrar o Ano Novo
como muita gente estava fazendo. Se você for sair do hotel e precisar de álcool
para se locomover, beba antes e vá porque a polícia, infiltrada na multidão, te
rende e leva sua cachaça embora. Vi
beberrinhos e beberrões com cara de
cachorro que quebrou o prato olhando as mãos vazias depois que os canas levaram
sua manguaça embora. Alguns imigrantes te oferecem bebida na rua, não compre! É
contra a lei. Se quiser beber, vá para um bar ou café nas proximidades da Torre
ou do Arco, lá as pessoas estão bebendo seus vinhos, seus champanhes, chás, cafés, e
compartilhando da doce companhia de estranhos e amigos instantâneos nas ruas
abarrotadas, enquanto esperam a multidão ir aos poucos desocupando as estações
de metrô – que até ao meio-dia do dia 1º não cobram tarifas – e sentem o vento
gelado da noite francesa na calçada em frente aos bares, restaurantes e cafés
sendo esquentados pelo calor humano aceso ao redor nos olhos daqueles que nessa
data tão emblemática estão buscando novos começos, novos caminhos, novas
amizades. Pessoas que serão capazes de te parar na rua e cantar pra você como
se saídas de um filme desses que se viam até os anos 60 – como aconteceu
conosco quando subíamos a rua de madrugada em direção à gare e um francês
regado a vinho pulou na nossa frente e começou a cantar “I wanna love you”, de
Bob Marley, segurou um de nós pela mão e começou a dançar em plena rua,
cantando a plenos pulmões e parando a multidão que vibrava com aplausos e
assobios ao nosso redor. Trazendo ao nosso íntimo a questão: pra que fogos, pra
que shows caríssimos, pra que explodir champanhes?
O importante mesmo era celebrar o ano que
passou, agradecer as conquistas e as dificuldades que nos fortaleceram, lançar
vibrações positivas para os próximos 365 dias e seis horas, pensar em nossos
entes queridos, todos eles, e lhes enviar nosso amor, olhar ao redor e ver
tantos rostos estranhos felizes, tanta gente desconhecida conversando como se
te conhecesse há anos e nossos amigos ainda mais amigos do que há alguns dias. Essa
é Paris do Réveillon: a cidade das novas descobertas, sem fogos de artifícios.